John Graz, Guache, Sem título, 1980.
O título dessa publicação pretende estabelecer um diálogo, em algum plano, entre os interesses explícitos de Mário de Andrade e as vivências e observações artísticas de John Graz. Não pretendemos e não queremos afirmar aqui que a motivação do artista suíço provém das ações do primeiro. No entanto, também não podemos descartar algumas possíveis influências, devido ao convívio que ambos tiveram, sobretudo se pensarmos que a questão que aparece tanto nos trabalhos como nas pesquisas de Mário também acabam emergindo no conteúdo das obras de John Graz.
Sendo assim, a proposta desse artigo é apresentar algumas obras de John Graz que representam olhares que o artista teve em relação à dinâmica da vida brasileira. Em diversas telas e guaches, ele retratou populações nativas, cerimônias religiosas, alguns jogos e muitas cenas de trabalho, além de uma temática bandeirante – que marca suas primeiras décadas no Brasil. As andanças que realizou pelo país, as cenas que captou, as ações que o intrigaram, tudo isso serviu como material para sua criação artística e aparecem com força em seus quadros.
Painel de John Graz em imóvel na rua Peixoto Gomide que está em processo de tombamento pelo Condephaat.
Por sua vez, o autor de “Macunaíma” realizou ampla pesquisa para a composição da obra e colheu inúmeros mitos ao longo da década de 1920, em um período próximo da chegada de John Graz ao Brasil. O interesse de Mário de Andrade era também partilhado pelo círculo modernista, preocupados em estruturar um discurso que fornecesse sentido e identidade à sociedade brasileira. Essa temática foi recorrente em diversos campos artísticos, como a literatura, artes plásticas, teatro e música. Por outro lado, John Graz, no papel de estrangeiro, participou das discussões do grupo modernista e expôs na Semana de Arte Moderna de 1922, além de ter sido membro da SPAM (Sociedade Pró Arte Moderna), no início da década de 1930. Por isso, nós podemos afirmar que ele certamente conviveu com essas discussões e olhares acerca do nosso país.
No início de 1938, Mário de Andrade estava à frente do Departamento de Cultura da cidade de São Paulo e idealizou a “Missão de Pesquisas Folclóricas”. Ao longo do primeiro semestre do respectivo ano, essa Missão passou por mais de 30 cidades do Nordeste e do Norte do Brasil com intuito de registrar expressões culturais regionais, como danças, cantos, festas e rituais religiosos. Ao rever esses registros, hoje disponibilizados no YouTube, nós encontramos imagens de festas, como o bumba meu boi, sons de aboios e modinhas, além de registros em vídeo de cerimônias indígenas e de terreiro, bem como outras expressões culturais tradicionais.
Montagem com duas fotos da expedição “Missão de Pesquisas Folclóricas”, 1938.
Preocupado com a “plena, muito rápida decadência” da cultura popular, ameaçada por um avanço da modernização e da “civilização”, o pesquisador entendia que o registro das atividades era fundamental para preservação e fomento dessas expressões culturais. Segundo Mário: “A civilização criou um preconceito de cidade moderna e progressista, de boa educação civil. E como em Paris, Nova York e São Paulo não há danças dramáticas, Recife, João Pessoa e Natal perseguem os Maracatus, Cabocolinhos e Bois, na esperança de se dizerem policiadas, bem-educadinhas e atuais. Cocos viram besteira, Candomblé é crime, Pastoril ou Boi dá em briga. Da maneira como as coisas vão indo, a sentença é de morte”.
John Graz, Guache, Sem título, 1972.
Motivado pelas viagens que realizou por essas localidades ao longo da década de 1920, somado à preocupação com o desaparecimento desses traços culturais, o chefe do Departamento de Cultura da cidade de São Paulo resolveu criar essa missão de investigação e registro. Os equipamentos utilizados foram câmeras fotográficas, filmadoras, gravadores e cadernos. Esses registros em áudio, vídeo e texto revelam um patrimônio imaterial rico e diverso, que em certa medida sintetiza a pluralidade do amálgama brasileiro e que se materializou em milhares de documentos.
John Graz, Guache, Sem título, 1927.
Nas primeiras décadas do século XX, John Graz chegava ao Brasil. O artista plástico suíço estava se fixando no país nesse período e foi incorporado ao círculo dos modernistas por sua primeira esposa e por seu cunhado (Regina Gomide Graz e Antonio Gomide). Estimulado pela curiosidade e por um olhar estrangeiro, também percorreu diversas cidades do Nordeste e do Norte, registrando em fotografias cenas do cotidiano. Regina Gomide Graz pesquisava desenhos e padrões indígenas que eram utilizados em seus trabalhos de tapeçaria. Na obra de John, essas imagens e vivências foram tomadas como referência para a composição de diversos trabalhos em guache e óleo sobre tela, apresentando cenas com pessoas comuns realizando tarefas cotidianas, trabalhando e participando de cerimônias e festividades.
Foto de Mário de Andrade na viagem que fez para a Amazônia em 1927.
Para além de uma possível preocupação com a preservação de tais expressões culturais, a discussão aqui apresentada visa mais explorar o encantamento de John Graz com a estética e beleza da vida cotidiana brasileira em sua multiplicidade de cores e matizes, presente nas rodas de capoeira, nas cerimônias nos terreiros, no comércio de animais exóticos, na venda frutas, no trabalho dos pescadores, nas expedições indígenas de caça, etc. Na década de 1960, quando John Graz retoma com intensidade a produção no campo das artes plásticas, algumas viagens que realizou são fonte de inspiração para sua produção, como a visita a Salvador, a travessia de barco Belém – Manaus, além da visita às cidades do entorno.
John Graz, Desenho, Sem título, 1977.
Por ser um cidadão europeu que chegou em um Brasil ainda pouco habitado e desenvolvido, Graz deve ter sentido grandes diferenças de perspectivas e possibilidades de vida nesse território. Um país de dimensões continentais, recém alçado à República, com inúmeros territórios a serem desbravados, repleto de imigrantes de vários pontos do mundo, misturados com negros filhos de escravos, índios, etc. Fato é que esse amálgama efervesceu sua produção artística, encheu de cores seus trabalhos e o fez se apaixonar por esse país. Na maioria dos seus trabalhos as pessoas retratadas são negras ou com tons de pele escura, geralmente com roupas simples e coloridas, envoltas pela vegetação local e por animais. Seu olhar do Brasil é fonte de estudos e revela uma série de sentimentos que afloram naqueles que escolhem viver nesse país.
John Graz, Guache, Sem título, 1969.