INSTITUTO JOHN GRAZ

Rua Pedroso Alvarenga, 1177 - Conjunto 11

CEP 04531-012 - São Paulo/SP

Fone: (11) 99890-0481

contato@institutojohngraz.org.br

John Graz, Viajante

Data: 07/03/2017 - Local: São Paulo

… viajantes
Têm ânsia de viajar.
É a viagem que os dirige, não o desejo
de parar aqui, ali.

Carlos Drummond de Andrade

 

Em sua biografia, John Graz consta ser um homem de boas maneiras. O homem de boas maneiras age por uma lei interna, bebe as águas da Fonte, faz fugir os malefícios, harmonizar o Olhar. Mensageiro modernista, este viajante suíço do século XX, remonta às mesmas curiosidade e expectativa que direcionam artistas viajantes, aqui aportados no século XIX. O Brasil era um país intrinsecamente colonial, quase desconhecido; a vinda da Família Real e a abertura dos portos às nações amigas e vassalos – inclua-se também, os habitantes e a natureza pujante, em tudo carente de um olhar científico, classificatório – colocam o Brasil na rota de viajantes do mundo inteiro, convidados ou não, da única monarquia americana; eram artistas conhecidos, ou não, cientistas ou amadores, que utilizavam técnicas diversas, do desenho à gravura, da pintura à fotografia; seus discursos eram de caráter eminentemente informativo, documental ou religioso e aparecem em formas variadas: cartas e informes em torno de condições da colônia, roteiros náuticos, relatos de naufrágios, descrições geográficas e sociais, descrições da natureza e dos povos nativos, autos para a catequese dos indígenas e até sob a forma de epopeias com assunto local, todos ilustrados; claro que a construção da imagem do Brasil por eles apresentada, às vezes, reflexos de mitos e fantasias, tem muito invencionismo romântico, apoiado em cânones acadêmicos; outros, que vieram com a Missão Francesa, trabalhavam para a Corte portuguesa, mas “o mundo parecia renovar-se ali e regenerar-se…” (Sergio Buarque de Holanda); assim, criou-se a História brasileira, inebriada pelo sublime, aliado principal do pitoresco, vocábulo presente inclusive nos títulos da obra de Rugendas e Debret, para indicar a variedade intensa do vocabulário visual da paisagem brasileira, em sua tríade terra, flora e fauna, atrelada ao fausto português; em detrimento dos aspectos culturais e sociais, privilegiavam o assombro frente a uma queda d’água, intocada, ou as florestas, com suas plantas e emaranhados, de beleza imensa e desconhecida. Estes viajantes trabalhavam entre o fascínio do exótico e a neutralidade científica; frente a um mundo natural, onde “parecia-nos ter-se renovado o quadro da criação do mundo, diante dos nossos olhos” (Spix & Martius). O viajante artista criava o cenário, o quase panorama, onde figuram costumes e atividades humanas; entre eles, o índio, selvagem por excelência, era ser a ser salvo; ou protagonizava o índio guerreiro, índio herói de José de Alencar e Gonçalves Dias; paradoxalmente, convivia com o assombro e o sublime do novo mundo.

 

No início do século XX, a língua falada no centro de São Paulo era o tupi; quando John Graz aqui chegou, em 1920, o triunfo da linguagem modernista baseava-se na anulação do academicismo que o antecedera. Frente da energia futurista, como Oswald de Andrade o reverenciou, ao adquirir-lhe uma das telas expostas na Semana de 22, e conclamá-lo “meu artista futurista”, John Graz traz em sua bagagem artística, a concepção modernista de arte, em especial, a paisagem, vivenciada na admiração por Ferdinand Hodler, mestre do modernismo suíço, que reduz seus horizontes a uma linha contínua, infinita, que perpassa a paisagem de um quadro a outro. Enquanto o próprio Oswald, Anita Malfatti, os Gomide, Brecheret, Tarsila, viajam à Europa, entusiasmados pelos -ismos diversos da vanguarda europeia, John Graz faz o caminho inverso: cidadão do mundo, traz ao Brasil a visão modernista, apre(e)ndida em seus estudos acadêmicos e nas viagens, também de estudos, à Alemanha e Espanha.

 

John Graz parte da paisagem ideal, criação estética, contra a descrição quase anatômica da natureza, adotando o mesmo enfoque do historiador Humboldt que cria na categoria geográfica de um país, se cerceada pela cultura e crença do seu povo; cronista visual, anota, in loco, em cadernetas de viagem, estudos e esboços que depois, no atelier, amplia em estudos sempre maiores até chegar ao desenho ou tela, assinados; esta característica e muitas obras, aproximam-o da vertente dos viajantes do século XIX. Frente a um país novo, de belezas e grandezas desconhecidas, o artista trabalha com perspicácia reducionista; caracteriza a imensidão da floresta, através de um único tronco, grande, com folhas gigantes. Esta unicidade, com formas agigantadas, é o tratamento aproximado que Tarsila, anos depois, dá às suas telas antropofágicas, com temática brasileira, trabalhadas na dicção legeriana. A composição de John Graz vale-se dos cipós, abundantes, que emaranham, suavemente, o suporte da obra, creditando-lhe a dimensão estética e cromática. Extrapola assim, o pitoresco tropical para uma recriação da natureza, do homem e dos temas que o cerca; repórter de um país em ebulição, resgata na paisagem generosa, o domínio do risco e do desenho, da cor e da pintura; ainda na esteira dos viajantes, torna-se um artista brasileiro por excelência, distancia-se do olhar estrangeiro, domina o assombro no traço preciso, o sublime na pincelada econômica, a luminosidade generosa na cor certeira; e não desdenha seus personagens, mas desenha-os sempre em ação, dramáticos, ora trabalhando em profissões regionais, ora orando junto aos deuses ou divertindo-se nas festas populares. Estes temas e ações são, muitas vezes, recorrentes nas suas viagens por outros países, e diferenciam-se nas especificidades da paisagem visitada: a cor terra-laranja do Marrocos; os azuis / brancos da Grécia; as construções marrons da Espanha; os verdes-água da Itália. A Paisagem só existe se re(a)presentada. A história natural, o fato social não é essencial em sua ambição; seus interesses, estéticos e técnicos, empenham-se em transmitir os caminhos do prazer e do humor em suas anotações, por exemplo, em dois desenhos diferentes, a fuga da Sagrada Família tem como pano de fundo o Marrocos e o Egito (ou seria a América Latina?); as realidades são as possíveis, propagadas em cores amplas e brilhantes e escapam ao documental, mesmo quando utiliza-se das fotografias como referência, montadas em colagens contemporâneas, inéditas. A mostra resulta na viagem reveladora de paisagens, usos, costumes, flora, fauna, raças, mitos, crenças e fantasias da Cultura diversa.

 

Precursor do modernismo, junto com Anita, Di Cavalcanti, Rego Monteiro e outros. John Graz deu-se a chance de estranhar o visto, revisto em sua trajetória de vida, e confirmar seus saberes, ao recriar um Brasil novo, de sabor moderno; não interpretar nada, mas Fazer! Sempre! – restabelecendo vínculos possíveis e perceptivos entre o representado e o representar: misto de passado e presente, com o Olhar voltado para o perene. Entre o Espaço e o Viajante – objetos, cores filtradas em partículas, pigmentos. o riso do grafite. o risco dos personagens. a Natureza. O Homem. – a Obra acontece, no Tempo, pairando em Essências.

 

A sinceridade modernista de John Graz aparta-se dos feitos seduzíveis, dos efeitos sedutores para, antropofagicamente, reconquistar um Brasil moderno, visível, Brasil brasileiro, representado a partir de fatos reconhecíveis da produção artística, acadêmica ou não, reavaliada com o olhar da curiosidade e da aprendizagem (a inovação do fazer artístico implica na referência e estudo dos fazeres anteriores: História! Estória!) e atualizar este Olhar, em linguagem diferenciada e diferenciadora, na busca do essencial do trabalho artístico, no bom dizer de Ezra Pound: a novidade que permanece. Destarte, confirmam-se as boas maneiras do viajante John Graz.

 

sergiopizoli
curador

 

*Texto do catálogo da exposição “John Graz, Viajante”, realizada entre 16 de outubro e 24 de novembro de 2013 no Centro Cultural Correios.